terça-feira, 11 de junho de 2013

PAUSA (MOACYR SCLIAR)

                                                           
        


 Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro. Fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
      —Vais sair de novo, Samuel?
Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
         —Todos os domingos tu sais cedo – observou a mulher com azedume na voz.
         —Temos muito trabalho no escritório – disse o marido, secamente.
Ela olhou os sanduíches:
         —Por que não vens almoçar?
         —Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.
A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse a carga, Samuel pegou o chapéu:
         —Volto de noite.
As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente, ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé:
         —Ah! Seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
         —Estou com pressa, seu Raul – atalhou Samuel.
         — Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre - Estendeu a chave.
Samuel subiu quatro lanços de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade:
         —Aqui, meu bem! – uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta a chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho: a um canto, uma bacia cheia d’água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.
Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se fechou os olhos.
Dormir.
Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a move-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.
Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo luminoso no chão carcomido. 
Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado o cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se em sangue, molhando de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.

Às sete horas o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para a bacia, levou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.
Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
         — Já vai, seu Isidoro?
         —Já – disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.
         —Até domingo que vem, seu Isidoro – disse o gerente.
         —Não sei se virei – respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caia.
         —O senhor diz isto, mas volta sempre – observou o homem, rindo.
Samuel saiu.
Ao longo dos cais, guiava lentamente. Parou um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa.

(in: Alfredo Bosi, org. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 275)

Situação de Aprendizagem envolvendo atividades de leitura 

Local da aula – sala de informática
Público Alvo – 9º ano / 8ª série
Número de aulas – 06 a 08 aulas

Conhecimentos prévios  de mundo e inferências globais
(antes da leitura)

1.      O que os alunos entendem por “pausa”?
2.      O conto foi editado em 1969, qual o conhecimento que possui desta época?
3-  O que vocês esperam de um texto com esse título?
4-   Alguém já ouviu falar de Moacyr Scliar? Que tal pesquisar na internet sobre este autor?

Levantamento de Hipóteses
1. Por que ele dormia naquele hotel?
2 - Por que utilizava um codinome?
3 - Como era o relacionamento familiar da personagem?



Checagem de hipóteses e localização 

1- Quais as palavras que dificultaram o entendimento do texto? (se necessário, consulte no dicionário on-line).

2-  Qual é a relação entre o título e o contexto abordado?

3-  Quais são os indícios textuais que levam o leitor a acreditar que o personagem cometia um adultério?

4-  Por que no texto o autor utiliza os pronomes “tu”?

Produção de inferências locais / globais

Diante das atitudes da personagem, como era o relacionamento do casal?
a.       Baseado no companheirismo e cumplicidade
b.      Era um casamento feliz
c.       Era uma relação divertida, apesar de o marido ter muito trabalho
d.      Era um casamento monótono

1- Em que momento do texto o personagem se sente livre? Justifique sua resposta com trechos do texto.

2-Quais eram os nomes utilizados pelo personagem? Levante hipóteses que expliquem essa atitude


3- Quais são as pistas que o autor coloca, que demonstra que o personagem está habituado a fazer sempre as mesmas ações?

4- Após a leitura do texto, a traição da personagem se confirma? Justifique.

5- Resumir o texto em apenas três atos.

Flávinha
Cruzando linguagens, texto Pausa (Moacyir Silar) e Felicidade Clandestina (Clarice Lispector), (9ºano04 aulas de 50 minutos cada)

                                        Felicidade clandestina ( Clarice Lispector)
          Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
          Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
         Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
          Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
          Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
          Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
           No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
           Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
          E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
          Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
          Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu.            Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
          E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
           Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
           Chegando a casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
           Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
           Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Atividades complementares: Na situação de aprendizagem, texto Pausa, podemos acrescentar o estudo da estrutura, elementos da narrativa e analise do protagonista.

No texto “Felicidade Clandestina”, podemos propor as mesmas análises, em seguida comparar os dois textos:

*Analisar o título, o significado de clandestina, a ambiguidade.

*Antes de ler o conto todo, apresentar o final “era uma mulher com o seu amante” , que sentido podemos depreender desse trecho?

* Roda de conversa discutir o enredo do texto Felicidade clandestina.


Vídeo “Felicidade Clandestina” na voz de Aracy Balabanian. Os alunos deverão acompanhar a leitura do conto


**Pesquisar biografia de Clarice Lispector


TRABALHO EM GRUPO:

Os alunos deverão responder, em grupo, às questões propostas sobre o texto lido.

1. Neste conto, a narradora – Clarice Lispector - recorda sua infância no Recife.

a. Quem são as personagens protagonistas do conto?

b. Qual delas é caracterizada de forma negativa? Transcreva do texto uma passagem que comprove sua resposta.

c. Apesar dos defeitos essa personagem é agraciada com algo que a tornava privilegiada. Qual era esse privilégio?

d. A narradora, era como as demais meninas. O que a narradora e as outras meninas tinham em comum?

2. Qual era o comportamento da filha do dono da livraria que chegava a ser irônico? Explique.

3. A filha do dono da livraria não valorizava a leitura e inconscientemente se sentia inferior às outras, sobretudo à narradora. O que ela fazia à narradora para se vingar?

a. Por que esse comportamento da menina indignava a narradora?

4. Chegou finalmente o dia da redenção da narradora, quando todos seus males seriam sarados. O que aconteceu nesse dia?

5. Qual foi a “felicidade clandestina” da menina? Por que clandestina?

6. O tempo no conto não é objetivo. Sabe-se que o tempo é a infância, embora ao final a autora evidencie o processo de amadurecimento da protagonista. De forma geral, há uma percepção temporal alterada, já que a ação do conto pode ter se passado em poucos dias – tempo cronológico - mas tem-se a impressão de que o suplício da menina durou uma eternidade.

*Fazer uma comparação entre as personagens do texto 1 (Pausa) e texto 2 )Felicidade clandestina), o que caracterizava a felicidade para Clarice  e para Samuel?


* O que caracterizava a felicidade para Clarice? E para Samuel?


Estratégias e recursos da aula

  • Utilização do laboratório de informática e sala de vídeo;
  • Atividades realizadas em grupo ou duplas de alunos;
  • Utilização de imagens, textos e vídeos veiculados na internet.


            Ilza                                               


3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Ficou muito bom. Gosto desse texto, tem um final diferente e agradável, o que nos leva a viajar com a nossa imaginação.

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  3. Olá !!!

    O blog de vocês está muito bonito, repleto de bons textos, boas ideias, a postagem das situações de aprendizagem que enriqueceram ainda mais. É percebido a participação de todos os integrantes do grupo. Parabéns !!
    Marcia Szilagyi Marinho

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